Por Redação central
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21 de abr de 2025 às 07:04
A morte do papa Francisco marca hoje o fim de um papado de 12 anos. Primeiro latino-americano e primeiro membro da Companhia de Jesus a ser eleito papa, seu legado será marcado pelo esforço de levar o Evangelho às periferias do mundo e às margens da sociedade, e abalar, às vezes vigorosa e desconfortavelmente, o que ele via como um status quo católico inaceitavelmente autorreferencial, pouco acolhedor e rígido.
Depois da inesperada renúncia do papa Bento XVI, em fevereiro de 2013, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, foi eleito a 13 de março de 2013.
Antes do conclave de 2013, o jesuíta argentino de 76 anos não era um dos principais candidatos. No entanto, depois de ter apresentado a sua visão da reforma da Igreja num discurso aos cardeais que antecedeu o conclave, a maioria dos eleitores ficou convencida de que ele daria uma resposta forte aos escândalos e desafios que assolam a Igreja e apresentaria soluções para o colapso da participação dos fiéis na Igreja e das vocações.
No nível institucional, Francisco foi responsável por várias reformas e iniciativas concretas. Mas ele será lembrado menos por isso do que por ser um líder que procurou chacoalhar, às vezes vigorosa e desconfortavelmente, o que considerava um status quo católico inaceitavelmente autorreferencial, pouco acolhedor e rígido.
Tomando o nome de Francisco de Assis, o santo italiano do século XIII fundador da ordem franciscana que adotou uma vida de pobreza radical, o novo papa pretendia promover uma Igreja que fosse ao encontro dos pobres, marginalizados e esquecidos e capaz de lidar com as complexidades da fé e das relações humanas no mundo de hoje.
“Prefiro uma Igreja magoada, ferida e suja, porque esteve nas ruas, do que uma Igreja que não é saudável por estar confinada e por se agarrar à sua própria segurança”, disse Francisco na Evangelii gaudium (A Alegria do Evangelho), sua exortação apostólica, de 2013, que pedia envolvimento pastoral nas favelas e cortiços.
Evangelii gaudium foi um manifesto do novo pontificado. No entanto, o verdadeiro projeto do seu pontificado é anterior à sua eleição e é claramente latino-americano: O documento conclusivo de 2007 da Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Aparecida de que o Cardeal Bergoglio foi o redator principal.
O “Documento de Aparecida” introduziu muitas das estratégias de evangelização mais tarde retomadas na Evangelii gaudium e reiteradas em Querida Amazônia, a exortação apostólica pós-sinodal de 2020, escrita em resposta ao Sínodo dos Bispos de 2019 para a região Pan-Amazônica.
Aparecida pediu uma “grande missão continental”, uma Igreja voltada para fora, humilde, com uma preocupação preferencial com a criação, entendida especialmente como o meio ambiente, a piedade popular, os pobres e as periferias. “Será um novo Pentecostes que nos impulsione a ir, de um modo especial, em busca dos católicos afastados e daqueles que pouco ou nada conhecem de Jesus Cristo, para formarmos com alegria a comunidade de amor de Deus nosso Pai. Uma missão que deve chegar a todos, ser permanente e profunda”, escreveu Bergoglio em Aparecida.
Uma vez papa, Francisco fez da “grande missão continental” um empreendimento para a Igreja Universal.
Falando em 2013 na Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, ele exortou o seu público jovem a não ter medo de agitar as coisas para evangelizar de forma mais eficaz.
“O que é que eu espero como consequência da Jornada Mundial da Juventude?”, perguntou-lhes. “Eu quero uma bagunça. ... Quero ver-me livre do clericalismo, do mundano, deste fechamento em nós próprios, nas nossas paróquias, escolas ou estruturas.”
Em busca dessa evangelização “bagunçada”, Francisco propôs uma visão ampla de descentralização, escuta e acompanhamento, uma Igreja de engajamento pastoral e misericordioso em detrimento do que enxergava como uma precisão doutrinária rígida e do clericalismo. O Papa declarou frequentemente: “Todos, todos, todos” como uma expressão de como a Igreja deve ser um lugar acolhedor de misericórdia.
Em dezembro de 2015, o papa Francisco deu início a um Jubileu Extraordinário da Misericórdia, um tempo especial para a Igreja “redescobrir e tornar fecunda a misericórdia de Deus, com a qual todos nós somos chamados a consolar cada homem e mulher do nosso tempo”. Missionários da Misericórdia foram incumbidos em 2016 de pregar o Evangelho da Misericórdia e concretizar essa pregação através do sacramento da Confissão.
A ponto central dos últimos anos do pontificado de Francisco foi a sinodalidade, tema do sínodo de três anos (2021-2024) que visava reformar permanentemente a Igreja para que todos os batizados, o Povo de Deus, “caminhem juntos, se reúnam em assembleia e participem ativamente de sua missão evangelizadora”.
Desde cedo o início, porém, pontificado trouxe à tona tensões existentes na Igreja há muito tempo, começando com tumultuosos sínodos de 2014 e 2015 sobre o Matrimônio e a Família, em que os bispos debateram a acabar com a proibição da Igreja de comunhão para divorciados em segunda união. A exortação apostólica pós-sinodal de Francisco, Amoris laetitia (A Alegria do Amor), com uma posição pouco clara, não atenuou a controvérsia.
A divisão aprofundou-se nos anos seguintes, quando alguns líderes da Igreja, especialmente na Alemanha, aproveitaram o que foi visto como ambiguidade doutrinal de Francisco para pressionar no sentido de alterar a doutrina da Igreja sobre celibato sacerdotal, uniões homossexuais e ordenação de mulheres. As tensões aumentaram na reação em toda a Igreja ao decreto de 2021 Traditionis custodes (Guardiões da tradição) que restringiu drasticamente o o à liturgia tradicional anterior à reforma do Concílio Vaticano II (1962-1965), e o decreto de 2023 Fiducia supplicans (Com confiança suplicante) que permitiu formas de bênçãos não-litúrgicas para uniões homossexuais e casais em situações irregulares.
O papa, por outro lado, traçou linhas claras em áreas-chave da doutrina. Com o documento de 2024 Dignitas infinita (Dignidade infinita) do Dicastério para a Doutrina da Fé, a Igreja reafirmou sua oposição perene ao aborto, à eutanásia e à ideologia de género. Francisco em uma entrevista ao programa “60 Minutes” da rede de TV americana CBS, em maio de 2024, voltou a afirmar categoricamente que a ordenação de mulheres ao sacerdócio e ao diaconato estava fora de questão.
No fim, decepcionou os progressistas católicos e meios seculares que esperavam uma revolução doutrinal, em vez do processo de reforma pastoral do papa.
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Nascido a 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, Argentina, Jorge Mario Bergoglio era um dos cinco filhos de um casal de imigrantes italianos. Seu pai, Mario, era contador na companhia ferroviária. Sua mãe, Regina Sivori, era dona de casa.
Criado no movimentado em Flores, distrito de classe média baixa no centro de Buenos Aires, Jorge ou muito tempo com a sua avó Rosa, a quem atribui sua educação na fé.
O momento crítico no discernimento da sua vocação foi em 21 de setembro de 1953, quando experimentou um encontro transformador com a misericórdia de Deus no confessionário. “Depois de confessar, senti que alguma coisa tinha mudado. Eu não era o mesmo”, recordou em 2010. “Tinha ouvido algo como uma voz, ou um chamamento. Saí convencido de que devia tornar-me padre”.
Depois de terminar formação técnica em química, Bergoglio entrou para o seminário diocesano, transferiu-se para o noviciado jesuíta em 1958, foi ordenado padre em 1969 e fez a sua profissão perpétua com os jesuítas em 1973.
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Em pouco tempo, ocupou cargos cada vez mais altos. Tornou-se provincial dos jesuítas na Argentina no mesmo ano da sua profissão perpétua, aos 36 anos de idade.
Desempenhou esse cargo durante seis anos, um período que coincidiu com o turbulento período inicial do pós-Concílio Vaticano II, que foi uma reviravolta na Companhia de Jesus, e com a Guerra Suja (1976-1983), a ditadura militar da Argentina que torturou, matou e fez desaparecer milhares de opositores.
Os horrores da Guerra Suja forjaram no jovem padre jesuíta uma profunda e permanente antipatia pelas ideologias políticas.
Embora alguns jesuítas na América Latina e Central viessem mais tarde a abraçar elementos marxistas da teologia da libertação, Bergoglio e a maioria dos seus irmãos argentinos rejeitaram esse caminho. A corrente argentina da teologia da libertação, a Teologia do Povo, “nunca usou categorias marxistas, ou a análise marxista da sociedade”, disse o padre jesuíta Juan Carlos Scannone em Nosso Irmão, Nosso Amigo: Memórias Pessoais sobre o Homem que se Tornou Papa.
Liderar com controvérsias 73213p
Na traiçoeira paisagem política da época, o padre Bergoglio causou enorme controvérsia com reformas que fez na província jesuíta argentina. Como ele mesmo ite, grande parte do problema foi seu estilo de liderança autoritário à época. “Tive de lidar com situações difíceis e tomei decisões abruptamente e sozinho”, disse numa entrevista em 2013. “A minha forma autoritária e impulsiva de tomar decisões levou-me a ter problemas graves e a ser acusado de ser ultra-conservador”.
Depois, Bergoglio foi, de 1980 a 1986, reitor do seminário jesuíta de San Miguel. Como reitor, ele também causou divisões. Os críticos o acusavam de tentar remodelar a instituição segundo linhas anteriores ao Vaticano II que entravam em conflito com as práticas jesuítas contemporâneas na América Latina, na linha de frente do progressismo político católico.
Depois de deixar o posto de reitor, o padre Bergoglio viajou para a Alemanha em 1986 para terminar seu doutorado. Após seu regresso, teve inicialmente uma posição influente entre os jesuítas locais. Em 1990, já na casa dos 50 anos e com os seus críticos também em cargos importantes, o padre Bergoglio foi mandado embora de Buenos Aires como diretor espiritual e confessor da comunidade Residencia Jesuita em Córdoba, Argentina. Foi uma medida disciplinar, tomada com a aprovação do Padre Peter-Hans Kolvenbach, então superior-geral da Companhia de Jesus, que Francisco recordou como “um tempo de grande crise interior” numa entrevista de 2013.
A austeridade do padre Bergoglio e sua prodigiosa capacidade de serviço humilde e prático inspiraram jovens jesuítas durante e depois de seus atribulados mandatos de provincial e reitor de seminário.
“Quando nos levantávamos às 6:30 ou 7:00 para ir à missa, Bergoglio já tinha rezado e já tinha lavado os lençóis e toalhas de 150 jesuítas na lavandaria”, recordou o cardeal jesuíta Ángel Rossi, ex-aluno da comunidade Residencia Jesuita, em seu livro Recordações Pessoais sobre o Homem que se Tornou Papa.
Serviço Episcopal 124i3m
Em 1992, a pedido do arcebispo de Buenos Aires, Antonio cardeal Quarracino, o papa São João Paulo II tirou o padre Bergoglio do seu exílio em Córdoba e o nomeou bispo-auxiliar de Buenos Aires. Em 1997, João Paulo II nomeou-o arcebispo-coadjutor de Buenos Aires com direito de sucessão. Com a morte de Quarracino, em fevereiro de 1998, Bergoglio tornou-se arcebispo metropolitano de Buenos Aires. O Papa João Paulo II criou-o cardeal em 2001.
Como arcebispo, Bergoglio ficou famoso por andar de metrô, morar em um apartamento simples e dedicar muito do seu tempo aos pobres e a quem vivia nas favelas da cidade.
Ao mesmo tempo mostrou-se politicamente astuto, sem receio de confrontar os líderes políticos argentinos. “O poder nasce da confiança, não da manipulação, da intimidação ou da arrogância”, disse o cardeal Bergoglio numa homilia de 2006 que visava o então presidente argentino Nestor Kirchner, peronista de esquerda que tinha entrado em conflito com o arcebispo em questões morais.
Para além da Argentina, o seu papel de relevo na Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em 2007, em Aparecida, deu-lhe uma maior proeminência na Igreja universal.
Um pontificado das periferias 6yk48
Oito anos depois do conclave de 2005 que elegeu o papa Bento XVI e deixou o cardeal Bergoglio, segundo se alega, em segundo lugar. o Colégio dos Cardeais escolheu op arcebispo de Buenos Aires para suceder o papa alemão. O primeiro papa não europeu desde Gregório III em 741 deu imediatamente o tom do seu pontificado: “Sabeis que o dever do conclave era dar um bispo a Roma”, disse do balcão da basílica de São Pedro no Vaticano na noite da sua eleição. “Parece que os meus irmãos cardeais foram quase até ao fim do mundo para isso, mas aqui estamos”.
Muitas das preocupações que teve na Argentina e em Aparecida tornaram-se a base do seu papado. Não usou vestes pontificais tradicionais e não morou no palácio Apostólico, mas na Domus Sanctae Marthae, casa de hóspedes do Vaticano. Falou continuamente da necessidade de uma Igreja que “saia de si mesma para evangelizar”, procurando e acompanhando aqueles que se encontram nas “periferias” da existência humana. As máximas importantes do pontificado de Francisco - a Igreja como hospital de campanha, “sair para as margens” e a necessidade de os líderes da Igreja “cheirarem como as ovelhas” - foram acompanhadas de imagens poderosas como a do papa lavando os pés de um jovem muçulmano na Quinta-feira Santa, abraçando um homem desfigurado na praça de São Pedro e posando para selfies com jovens.
“A verdadeira Igreja está nas periferias”, disse ele no documentário da Disney O Papa: Respostas, exibido em abril de 2023.
A primeira viagem de Francisco para fora de Roma foi à pequena ilha italiana de Lampedusa, onde chamou a atenção para a situação dos migrantes que se arriscam a morrer na travessia do Mediterrâneo para entrar na Europa. O papa falou muitas vezes da situação dos migrantes e dos refugiados, da divisão Norte e Sul do mundo, criticando políticas econômicas que exploram nações mais pobres, reflexo de sua perspectiva latino-americana sobre política e economia. Francisco criticou duramente o que chamou de “globalização da indiferença”, que ignora o sofrimento das pessoas nas margens da sociedade, e de “cultura do descartável”, que considera descartáveis os fracos e vulneráveis.
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Uma caraterística desse enfoque nas periferias foi dizer que a tentativa dos países ricos de impor o aborto, a contracepção e a ideologia de gênero aos países pobres em troca de ajuda e desenvolvimento é uma forma de “colonização ideológica”.
Essa condenação, reiterada várias vezes, mostra que a atenção do papa Francisco às margens da sociedade humana não permitia classificá-lo apenas como apoiador de agendas políticas e sociais progressistas. Na visita de abril de 2023 à Hungria, país cujo governo conservador supostamente estava em conflito com as prioridades do papa, Francisco denunciou “o caminho banal tomado por aquelas formas de colonização ideológica que cancelam as diferenças, como no caso da chamada teoria de gênero, ou que colocariam perante a realidade da vida conceitos redutores de liberdade, por exemplo, alardeando como progresso um direito ao aborto sem sentido, que é sempre uma derrota trágica”.
O estilo informal de comunicação do papa, presente em entrevistas como as que deu ao jornalista ateu italiano Eugenio Scalfari e em comentários improvisados, especialmente em suas entrevistas coletivas no avião papal, fez surgir um quase-magistério paralelo, usado por meios de comunicação católicos progressistas e pela mídia secular para dizer que o papa estava querendo grandes mudanças na doutrina da Igreja.
Durante a entrevista coletiva a bordo do avião que o levou de volta da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em 2013, perguntou-se ao papa sobre um bispo e os rumores sobre a existência de um lobby gay no Vaticano.
Francisco distinguiu o que uma pessoa é do fato de participar de um grupo de pressão: “Se alguém é gay e está à procura do Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?” O noticiário caracterizou o comentário como um abrandamento da proibição moral da Igreja aos atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, e a Santa Sé não deu mais esclarecimentos.
O papa Francisco também procurou construir pontes com a comunidade internacional. As duas encíclicas escritas inteiramente durante o seu pontificado, Laudato si (2015), “sobre o cuidado da casa comum”, e Fratelli Tutti (2020), sobre “fraternidade e amizade social”, foram bem recebidas pela imprensa internacional.
Francisco escreveu quatro encíclicas, sete exortações apostólicas e 75 documentos motu proprio, o que faz dele um dos papas mais prolíficos em termos de ensino magisterial.
O seu discurso e a sua bênção Urbi et Orbi, proferidos em março de 2020, durante a pandemia de covid-19, numa praça de São Pedro esvaziada e chuvosa, bem como o seu papel de pacificador, trabalhando para restabelecer os laços diplomáticos entre os EUA e Cuba e oferecendo-se para mediar o fim da invasão da Ucrânia pela Rússia, ajudaram a estabelecer o papa como um protagonista não só para a Igreja, mas para o mundo. Em 2024, Francisco tornou-se o primeiro papa a participar da reunião dos líderes mundiais do G-7.
O desejo do papa de negociar e dialogar também o levou a um acordo secreto com o governo da China sobre nomeação de bispos em 2018. O acordo foi criticado como uma traição incompreensível, uma vez que Pequim continuou a reprimir a liberdade religiosa e violou o acordo em várias ocasiões. A Santa Sé insistiu que era necessário ter paciência para que a iniciativa desse frutos, apesar das frequentes violações do acordo por parte do regime comunista chinês e da aplicação cada vez mais draconiana do seu programa de “sinicização”, que exige que todas as religiões se conformem aos preceitos do governo chinês e sejam independentes da influência estrangeira.
O Cardeal Marc Ouellet, chefe do Dicastério para os Bispos durante grande parte do reinado de Francisco, disse que a capacidade do papa Francisco de gerar interesse na Igreja por parte dos que estavam fora dela era um sinal do seu “estilo missionário”. “Um missionário está nas fronteiras; ele procura aqueles que estão longe”, disse ele à EWTN News em uma entrevista em fevereiro de 2023.
O espírito missionário mundial do papa Francisco foi evidente em suas viagens. Ele fez 47 viagens apostólicas fora de Itália, visitando 61 países, numa média de quase seis países por ano. Mais do que os cinco países por ano do “papa viajante” original, são João Paulo II. As visitas de Francisco alocais como o Iraque devastado pela guerra, a República Centro-Africana e o Sudão do Sul, indicaram uma preferência pelo Sul global e por nações afetadas por conflitos.
Esta preferência pelas margens refletiu-se também na escolha de muitos novos membros para o Colégio dos Cardeais pelo papa Francisco. Em dez consistórios, ele criou 149 novos cardeais. A composição do colégio ou de 52% de europeus no início do seu papado para apenas 35% hoje. O colégio reflete agora uma Igreja mais global, com a América do Sul e a Ásia com 15% dos cardeais, a América do Norte com 17%, a África 12%, e a Oceânia 7%.
O papa Francisco escolheu 110 dos 138 cardeais que irão agora votar no seu sucessor.
A sua visão ficou particularmente evidente nas nomeações de cardeais de países com populações católicas minúsculas, como a Mongólia e Marrocos, das periferias, como Tonga e Haiti, e de locais de conflito, como Myanmar, Sudão do Sul e República Centro-Africana.
A tendência de Francisco para criar cardeais com base no instinto pessoal, em recomendações ou em ligações, em detrimento dos hábitos, também o levou a preterir candidatos de tradicionais sés cardinalícias. Nos EUA, o arcebispo José Gomez, de Los Angeles, ex-presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA e chefe da maior arquidiocese dos EUA, nunca recebeu o chapéu vermelho. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco nomeou cardeal o bispo Robert McElroy, da diocese de San Diego, em 2022. Na Itália, o nomeado por Francisco como arcebispo de Milão, a maior arquidiocese da Itália, arcebispo Mario Delpini, também não foi criado cardeal.
Mas tal como abundaram suposições erradas sobre a sua suposta intenção de abandonar pontos fundamentais do ensino da Igreja, também houve uma crença errada de que as suas nomeações para o Colégio de Cardeais eram uniformemente progressistas. Muitos dos nomeados por Francisco, como McElroy, o arcebispo de Manaus, cardeal Leonardo Steiner, e o jesuíta Jean-Claude Hollerich do Luxemburgo, são progressistas convictos. Mas Francisco criou cardeais a vários conservadores como o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o carmelita Anders Arborelius da Suécia, e o franciscano capuchinho Fridolin Ambongo Besungu da República Democrática do Congo, líder da oposição dos bispos africanos a Fiducia supplicans em 2024.
Este equilíbrio refletiu-se de forma semelhante nas canonizações ao longo do seu pontificado. Francisco canonizou três dos seus antecessores, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. Ele também canonizou um total de 942 santos. Estes incluem os 813 Mártires de Otranto; o arcebispo salvadorenho Oscar Romero, um corajoso crítico das violações dos direitos humanos cometidas pelo governo; o grande convertido inglês e cardeal John Henry Newman, e Madre Teresa de Calcutá. O Pontífice acrescentou ainda dois novos Doutores da Igreja: o arménio São Gregório de Narek e o Padre da Igreja Santo Ireneu de Lyon. Chamou a Ireneu o Doutor da Unidade.
Reforma interna 443v56
A ênfase externa de Francisco foi acompanhada por sérios esforços de reformar as estruturas internas da Igreja Católica, para dar maior ênfase na missão e no serviço. Logo no início, nomeou um conselho de cardeais para o aconselhar sobre a reforma curial e da Igreja. O trabalho culminou em março de 2022 com a promulgação de Praedicate Evangelium, a nova constituição apostólica para a Santa Sé, que agora permite que os dicastérios, os departamentos da Santa Sé, sejam chefiados por leigos. A Congregação para a Evangelização dos Povos, que remonta a 1622, e o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, criado por Bento XVI em 2010, foram fundidos no Dicastério para a Evangelização, presidido diretamente pelo papa e substituindo a antiga posição de preeminência do Dicastério para a Doutrina da Fé na Cúria Romana.
Francisco abordou alguns aspectos das finanças da Santa Sé, ainda que escândalos tenham manchado esse esforço. O próprio papa foi envolvido num caso de fraude que levou ao julgamento e à condenação em 2023 de um dos seus mais próximos colaboradores, o cardeal Angelo Becciu, por má conduta financeira.
Francisco também empreendeu uma série de reformas relacionadas ao flagelo do abuso sexual do clero, começando em 2014 com a criação da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, chefiada pelo cardeal Seán O'Malley de Boston, que também era membro do Conselho de Cardeais do papa. Francisco convocou uma reunião de cúpula no Vaticano sobre a questão em 2019, que deu origem Vos estis, as novas diretrizes destinadas a levar os padres abusivos à justiça e responsabilizar os bispos pela forma como lidam com as acusações de abuso.
Mas o estilo sul-americano de governança do papa, muitas vezes baseado mais em seu instinto que nas regras, e numa tendência de manter todas as decisões nas suas próprias mãos, levou indiscutivelmente a pontos cegos na sua repressão dos abusos.
“Um punhado de padres, bispos e cardeais em quem Francisco confiou ao longo dos anos foram acusados de má conduta sexual ou condenados por isso, ou por terem encoberto a situação”, relatou a correspondente da agência de notícias Associated Press em Roma, Nicole Winfield, em 2020. Isto referia-se ao fato de Francisco ter inicialmente desacreditado as alegações contra um bispo no Chile que se revelaram verdadeiras, e também ter supostamente feito vista grossa aos relatos de má conduta sexual do ex-cardeal Theodore McCarrick até que as alegações foram tornadas públicas em 2018. Também foram levantadas questões sobre o conhecimento de Francisco do caso do artista jesuíta esloveno Marko Rupnik, que foi acusado de má conduta sexual, brevemente excomungado e finalmente expulso da Companhia de Jesus. Rupnik é o autor de um dos livros da coleção Teologia do Papa Francisco, publicada pela editora da Santa Sé. No final do pontificado, o escândalo de abusos sexuais continuava a pairar em vários países, como Bolívia e Portugal.
As críticas à forma como lidou com a crise dos abusos atingiram um nível sem precedentes de gravidade em 2018, quando o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, acusou o papa Francisco de negligência no tratamento das acusações de má conduta sexual contra McCarrick e pediu que o papa renunciasse. Em 2024, a retórica radical de Viganò, que chamou Francisco de herege, levou à sua excomunhão como cismático pela Santa Sé.
Papa da sinodalidade 4ei4f
Um dos projetos mais importantes para o papa Francisco na segunda metade do seu pontificado foi a “sinodalidade” na Igreja.
Espelhando a eclesiologia articulada em Aparecida e na Evangelii gaudium, Francisco usou o Sínodo dos Bispos para criar uma Igreja mais ouvinte, uma “pirâmide invertida” que tomou o Povo de Deus como ponto de partida e elevou significativamente a importância da Secretaria Geral do Sínodo sob o seu Secretário Geral, o Cardeal maltês Mario Grech.
Muitos críticos temeram que a sua abordagem se afastasse da visão do papa São Paulo VI, que criou o Sínodo dos Bispos depois do Vaticano II, e pudesse minar a autoridade de Roma, levar a uma maior confusão entre os fiéis e abrir caminho para mudar a doutrina da Igreja numa série de questões.
Os sínodos sobre a família e o matrimónio, a juventude e a Amazônia foram palco de discussões acaloradas, com bispos exigindo abertamente uma mudança na disciplina da Igreja para fazer face às novas realidades pastorais e até a pedirem o o das mulheres a uma forma de diaconato.
A exortação apostólica pós-sinodal de 2016 de Francisco, Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), na sequência dos polêmicos Sínodos sobre a Família de 2014 e 2015, levou a críticas de estavam criadas condições para que divorciados em segunda união pudessem receber a comunhão. Líderes da Igreja e dioceses deram interpretações contraditórias das orientações pastorais do documento, e a apresentação de cinco perguntas, ou dubia, por parte de quatro cardeais, em setembro de 2016, pedindo clareza no meio de “grave desorientação e grande confusão”, não foi atendida. As dubia enviadas a Roma em 2023 foram respondidas pelo novo chefe da doutrina de Francisco, cardeal argentino Victor Manuel Fernández, em termos que pareciam confirmar a interpretação mais abrangente possível.
Enquanto isso, leigos católicos alemães radicais, com o apoio da maioria dos bispos alemães, inspirados pela abordagem do papa, lançaram seu próprio Caminho Sinodal para exigir mudanças no ensino da Igreja sobre celibato sacerdotal, homossexualidade e ordenação de mulheres. Apesar de terem sido repreendidos por Francisco como “elitistas”, “inúteis” e “ideológicos”, os alemães foram em frente com o seu processo e arriscaram um cisma.
Ao mesmo tempo, Francisco enfrentou a desaprovação de bispos conservadores, preocupados que sua ambiguidade doutrinal, a forma como lidou com a crise dos abusos e o fato de ter feito pouco de membros da Igreja pelo clericalismo e pela rigidez estivessem confundindo os fiéis e a desanimando padres e seminaristas.
Francisco também criou uma onda de confusão com tratamento dado às comunidades católicas ligadas à missa tradicional em latim anterior à reforma do Concílio Vaticano II. Traditionis custodes, o motu proprio de 2021 que restringe liturgia antiga, chocou os adeptos do rito e levou mesmo alguns dos aliados liberais do Papa a caracterizar a linguagem dura do documento e a severa supressão da liturgia como um desvio surpreendente do chamado do papa à escuta sinodal. Outros, como o arcebispo Augustino Di Noia, dominicano e funcionário de longa data da Santa Sé, argumentaram que a intervenção do papa foi necessária para impedir a falsa ideia de que a missa pré-Vaticano II seria a verdadeira liturgia para a verdadeira Igreja.
Uma enorme controvérsia rodeou igualmente o documento escrito pelo cardeal Fernández no final de 2023, Fiducia supplicans, que permite bênçãos não-litúrgicas a uniões homossexuais e a casais em situação irregular. O decreto provocou grande divergência entre os bispos de todo o mundo, com quase todos os bispos africanos a recusarem-se a implementar o decreto, afirmando numa declaração formal em janeiro de 2024 que “semeou equívocos e inquietação nas mentes de muitos fiéis leigos, pessoas consagradas e até pastores”.
Francisco, por outro lado, também foi coerentemente claro em áreas-chave da doutrina da Igreja. Através do decreto de 2024 Dignitas infinita (Dignidade infinita) do Dicastério para a Doutrina da Fé, por exemplo, foi reiterada a doutrina da Igreja sobre a dignidade da pessoa humana.
Sem se deixar abater pelas críticas, o papa avançou com a sua ideia de uma Igreja sinodal, lançando em 2021 um processo de consulta no mundo inteiro de vários anos, que terminou em duas assembleias do Sínodo sobre a Sinodalidade em Roma, em outubro de 2023 e outubro de 2024.
Francisco tomou a decisão sem precedentes de não-escrever uma exortação apostólica pós-sinodal, optando por implementar diretamente o documento final do sínodo. “O que aprovamos no documento é suficiente”, disse.
Francisco tinha claramente a intenção de colocar a Igreja num caminho do qual, institucional e até teologicamente, seja difícil voltar atrás. Isto foi especialmente evidente na sua escolha, em 2023, do seu amigo, o então Arcebispo Victor Manuel Fernández, um teólogo argentino e ghostwriter de vários dos principais escritos de Francisco, como Laudato si' e especialmente Amoris laetitia, como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé e membro do Colégio dos Cardeais. Na carta que acompanha a sua nomeação, Francisco pediu ao seu novo prefeito “que verifique se os documentos do seu próprio dicastério e dos outros têm um e teológico adequado, são coerentes com o rico húmus do ensinamento perene da Igreja e, ao mesmo tempo, têm em conta o magistério recente”, ou seja, os escritos de Francisco na última década, muitos dos quais Fernández ajudou a escrever.
“Com as portas sempre abertas” 2l36l
A saúde do papa Francisco piorou nos últimos anos devido a vários problemas médicos, incluindo dores no ciático, problemas respiratórios, lesões nos ligamentos dos joelhos e duas cirurgias intestinais. Os problemas de mobilidade obrigaram-no a usar cadeira de rodas desde 2022. Ainda assim, manteve-se impressionantemente ativo quase até ao fim, cumprindo um exigente calendário de audiências e viagens.
Muitos em todo o mundo conservarão imagens vívidas de Francisco abraçando os mais pobres, um campeão da misericórdia e acolhida. Na noite da sua eleição, ele declarou que tinha vindo do fim do mundo. No seu pontificado inesperado e muitas vezes pouco apreciado, estendeu a mão aos confins da terra para declarar um lugar de acolhimento para todos, “todos, todos, todos”.
“A Igreja é chamada a ser a casa do Pai”, escreveu em Evangelii gaudium, ‘com as portas sempre abertas’. Um sinal concreto desta abertura é o fato de as portas das nossas igrejas estarem sempre abertas, para que, se alguém, movido pelo Espírito, lá chegar à procura de Deus, não encontre uma porta fechada.”
Em 24 de dezembro de 2024, como primeiro “peregrino da esperança”, Francisco abriu a Porta Santa da basílica de São Pedro, inaugurando o Ano Jubilar de 2025. Pela primeira vez na história, abriu também uma Porta Santa na prisão de Rebibbia, em Roma, mostrando seu compromisso com os que estão à margem da sociedade.
A morte do papa deixa inacabado o enorme projeto de sinodalidade e as reformas da Cúria Romana. Cabe agora aos cardeais escolherem um sucessor que decidirá como ou se a agenda de Francisco vai ser levada adiante. Ele deixa como legado uma comunidade católica polarizada, assolada pelas crises da modernidade e do relativismo. Ainda assim, a sua visão de uma Igreja das periferias que escuta e caminha com os que sofrem com misericórdia perturbou inquestionavelmente o status quo e começou um processo que continuará a ter impacto no catolicismo global muito depois de ele ter sido sepultado.
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